GRACILIANO RAMOS CRITICA O DESCOBRIMENTO DO BRASIL


Humberto Mauro, (1937)

UMA TRADUÇÃO DE PERO VAZ DESCOBRIMENTO BRASIL
 
A fita que Humberto Mauro nos apresenta agora é uma coisa bem estranha no cinema brasileiro. O governo da Bahia custeou-a, ou pelo menos patrocinou a execução dela - e procedeu com muito acerto. Estávamos acostumados a ver tanta coisa chocha que esse descobrimento do Brasil, realizado sob a orientação de técnicos que dispensam elogios, quase nos assombra. Ordinariamente víamos as películas nacionais por patriotismo. E antes de vê-las, sabíamos perfeitamente que, excetuado o patriotismo que nos animava, tudo se perdia.


Temos enfim um trabalho sério, um trabalho decente: a carta de Pero Vaz reproduzida em figuras, com admiráveis cenas, especialmente as que exibem multidão. Aí estão os fidalgos cobertos de veludo e de seda, a maruja descalça, a nau perdida, a chegada a Santa Cruz, a missa, a dança dos índios, a excelente dança dos índios, com excelente música de Vila Lobos. De atores, apenas Frei Henrique de Coimbra e mais dois frades.
Afirmaram-me que o físico mestre João passou alguns meses habituando-se a coxear. E tanto se habituou que hoje, peixeiro e fora da tela, continua coxeando. Esse mestre João, que vive mexendo no astrolábio e descobre uma vereda nova no céu, é magnífico. Os fidalgos portugueses estão bons, alguns estão muito bons, mas esse mestre João, peixeiro e coxo, é espantoso. Bom como ele só o degredado que fica junto da cruz. E índios muito verdadeiros, muito vivos: o que anuncia a vinda dos marinheiros, os que dançam na praia, os dois encontrados na piroga e levados a Cabral.
É aí que nos aparece um desgosto. Esses dois selvagens são ótimos: ingênuos, confiados, facilmente excitáveis. Perfeitos selvagens. O que nos espanta é o acolhimento que eles tiveram a bordo. Essas coisas estão na carta de Pero Vaz, é claro, mas lá estão contadas simplesmente e agora surgem pormenores que prejudicam a verossimilhança do caso.
Os estrangeiros se extasiam na presença dos hóspedes beiçudos e pintados que jogam fora a comida e cospem a bebida. São uns santos os portugueses, têm uma expressão de beatitude que destoa das façanhas que andaram praticando em Terras de África e de Ásia e por fim neste hemisfério. É o próprio almirante que põe cobertores em cima dos selvagens e lhes arruma travesseiros com uma solicitude, uma delicadeza de mãe carinhosa. Os visitantes praticam numerosos disparates - e os brancos não desmancham um sorriso de condescendência babosa.
Diante do invariável sorriso, chega-nos uma idéia triste. Se os europeus procederam de semelhante modo, foram os maiores canalhas do universo, pois enganaram, adularam torpemente os desgraçados que pouco depois iam exterminar.
Mas a intenção dos criadores da melhor película brasileira não foi denegrir o invasor: foi melhorá-lo, emprestar-lhe qualidades que ele não tinha. Se nos mostrassem apenas ofertas de cascavéis e voltas de contas, muito bem. Mas vemos um sorriso beato nos lábios daqueles terríveis aventureiros, vemos o comandante da expedição, com desvelo excessivo, lançar cobertas sobre os tupinambás e retirar-se nas pontas dos pés, para não acordá-los. Como não é possível admitir que o almirante pretendesse iludir criaturas adormecidas, é razoável supormos que ele tinha um coração de ouro.
Sabemos, porém, que os que vieram depois dele foram muito diferentes.
E lamentamos que nesse trabalho de Mauro, trabalho realizado com tanto saber, se dêem ao público retratos desfigurados dos exploradores que aqui vieram escravizar e assassinar o indígena.

 

Em Graciliano Ramos, Linhas Tortas, Rio de Janeiro - São Paulo, Record - Martins, 1976, páginas 143-144